sábado, 22 de julho de 2017

Tradição é mantida por artesãos


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O local onde se encontra esse tipo de barro fica distante uns seis quilômetros da vila, no pé da serra. Não se sabe ao certo como se deu a descoberta do barro de Santa Maria de cor acinzentada, que, quando molhado, escurece
Icó. Uma tradição que remonta ao século XIX começa a ser resgatada neste município, na região Centro-Sul do Ceará: transformar o barro em peças artesanais, pintadas, com formatos e tamanhos variados. Os utensílios são únicos na região. Após serem queimados, apresentam uma coloração clara, em tom amarelado, diferenciando das louças comuns que têm tonalidade marrom-avermelhada.
A louça de Santa Maria, como é conhecida na região, tem origem na Serra do Maia, zona rural deste município, bem próximo à Paraíba. Por pouco, a atividade artesanal não desapareceu, já que os mais idosos deixaram de lado o trabalho de transformar o barro em peças decorativas ou para uso doméstico e comercial, na cozinha e na mesa para preparar, servir e guardar os alimentos.
Apoio
O resgate da louça de Santa Maria tem o apoio da Central de Artesanato do Ceará (Ceart), que chegou a oferecer curso de designer na comunidade rural, atraindo dezenas de participantes. Outro incentivador é Narcízio Carlos de Almeida, diretor de políticas agrárias do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Icó, e morador da localidade. "Meu sonho é promover uma feira com a exposição das louças. Na programação, haveria cavalgada, comidas típicas, durante a festa da padroeira, Nossa Senhora de Fátima", explica.
A comunidade da Serra do Maia fica distante 25Km do centro urbano de Icó, na região do distrito de Icozinho. Agora é possível fazer o percurso por via asfaltada, a CE-282.
"No passado, eram os tropeiros que levavam as louças de Santa Maria e traziam rapadura e farinha do Cariri", conta Narcízio Almeida. "Icó fez parte do ciclo do gado e do couro, a penetração do colonizador no sertão cearense, a ligação entre Pernambuco, Aracati e Fortaleza", observa o advogado e pesquisador Getúlio Oliveira.
Segundo relato de moradores, até a década de 1970, havia dezenas de mulheres que trabalhavam na atividade. Eram as conhecidas louceiras, artesãs do barro. Cabia aos homens retirar a matéria-prima, que também recebe o nome de Santa Maria e trazê-la para casa, onde seria molhado, misturado e peneirado até encontrar o ponto ideal de moldagem e cozimento.
"Esse barro é como um veio, só tem em um local determinado, sob a terra, é preciso saber escavar um metro e encontrá-lo", disse Narcízio Almeida. "O local onde a gente encontra esse tipo de barro fica distante uns seis quilômetros da vila, no pé da serra", acrescenta.
Não se sabe ao certo como se deu a descoberta do barro de Santa Maria de cor acinzentada, mas, quando molhado, escurece. Poderia ter origem indígena. Os mais antigos da comunidade preferem a narrativa que se perpetuou entre as gerações, de que um morador do local, ao perfurar a terra para instalar estacas para montar uma cerca, percebeu a mudança do solo. "Minha avó contava essa história", afirma a artesã Maria Pedro da Cruz, mais conhecida como Maria de Totonha, 62.
Retomada
Na comunidade de Serra do Maia há cerca de 30 artesãos. A maioria, entretanto, está com atividades paralisadas ante a falta de comercialização. "Não se vende mais como no passado", lamenta Maria de Totonha, que apesar das reduzidas encomendas ainda prepara uma fornada de barro por quinzena. "Vez ou outra aparece quem queira comprar", afirma.
Quem enfrenta o desafio de resgatar o artesanato do barro na Serra do Maia é o agricultor Lauro Arlindo de Almeida, 42. Sempre o trabalho foi feito por mulheres, mas agora está nas mãos de um artesão o esforço de preservar uma arte centenária. "Está no sangue, a minha família trabalhava com isso", justificou. "Aos poucos fui me interessando e tomei gosto".
Arlindo conta que, quando era criança, via a mãe e a avó fazerem as louças. "Pegava um pouco do barro, escondido, e corria para o terreiro de casa para fazer cavalinhos", lembrou. "Era mais uma brincadeira". O que era lúdico agora se transformou em atividade com exigência estética e profissional. E como se deu essa passagem? "Deu certo, não achei difícil, depois que tomei interesse, vi que tinha que aprender", disse. "Agora já faço novas peças, com formatos diferentes dos tradicionais".
Das mãos ágeis do artesão e da inspiração, o barro molhado vai ganhando formas e se transformando nas peças mais variadas: prato, quartinha, tigela, panela, travessa, pires, xícara, pote, bule, porta cereais, grãos e farinheira.
Depois de pronto, recebe uma pintura avermelhada com desenhos diferentes e alguns inspirados nos traços do patrimônio colonial da arquitetura dos antigos casarões de Icó. A pintura é feita com o uso de uma tinta extraída de uma pedra, conhecida na região como Toá. As pedrinhas do tamanho de um grão de feijão são esfregadas com água em uma vasilha e libera uma tintura avermelhada.
Em 2015, durante seis meses, técnicos da Ceart foram à comunidade ofertar curso de designer. "Aproveitei a oportunidade", diz Arlindo. A mulher dele, Patrícia Barbosa, acompanhou o marido e hoje é quem faz a pintura das peças, com leveza e dedicação. "Se houvesse mais vendas, era bem melhor, porque a agricultura nesses anos de seca não está mais dando nada", lamenta. "A gente prepara a terra, planta e não colhe quase nada e o jeito é comprar milho e feijão", conta o artesão.
Mudança
Em meio à conversa, no alpendre da casa dos artesãos, enquanto o forno ardia, cozinhando um lote de peças, chega a irmã de Lauro, Lúcia Arlindo Matos, 65, que há mais de duas décadas deixou de produzir as louças de barro. "Aprendi aos quinze anos, com a minha avó, Josefa da Silva", disse. "A gente vendia na comunidade e vinham compradores que levavam para a Paraíba, Rio Grande do Norte e para outras cidades do Ceará".
Lúcia Matos recorda que as peças era conduzidas em malas de couro em lombos de jumentos e burros. "Todos faziam por necessidade, como fonte de renda", explicou. "Depois que vieram as panelas de alumínio e esses potes de plástico, não deu mais venda". Os artesãos mais idosos obtiveram a aposentadoria rural a partir da Constituição de 1988, que trouxe renda para o campo e reduziu a pobreza no meio rural. Hoje, os artesãos avaliam que as peças são mais valorizadas, mas para uso como peças decorativas em casas e lojas. "Antes as pessoas compravam para cozinhar, levar ao fogo à lenha, e para colocar os alimentos na mesa ou armazenar os mantimentos nas despensas", avalia Lúcia Matos. "No passado, ser louceira era motivo de chacota, havia discriminação".
Lauro Arlindo interfere: "Hoje, esse artesanato é visto como arte, tem reconhecimento nas lojas especializadas". O artesão lembra um fato curioso: "Fui o primeiro homem a fazer louças de barro aqui na comunidade". Laurindo assegura que atualmente não sofre piadas preconceituosas. "As pessoas são mais compreensivas".
A última remessa que Laurindo enviou para a Ceart, em Fortaleza, foi em agosto de 2016 para atender uma encomenda de 140 unidades. "Continuo fazendo porque, quando eles pedirem, já tenho muita coisa pronta", disse. Nos fundos da casa, próximo ao forno, há um quartinho, de paredes em tijolo aparente, onde o artesão deposita as peças prontas à espera de compradores.
O preço das peças varia entre R$ 10 e R$ 25, mas quando comprados em quantidade pode haver descontos. O artesão Lauro Arlindo e a artesã Maria de Totonha são os dois quem mantêm regularidade na produção das louças de barro, na Serra do Maia. Arlindo permanece fiel à fabricação exclusiva com o barro Santa Maria, que deixa as louças esbranquiçadas. Já Maria de Totonha prefere o uso do barro tradicional, que deixa os produtos avermelhados, destinados à utilidade doméstica. "Aprendi com minha avó e mãe, aos 14 anos, e não parei mais", disse. "Cansei de queimar duas fornadas por semana", acrescentou.
A secretária de Cultura e Turismo de Icó, Ana Glesse Oliveira, que tem parentes na região, disse que vai procurar articular com a Ceart e a Associação dos Produtores de Artesanatos de Icó, ações de apoio, planejamento e incentivo à retomada da produção e comercialização das louças de barro Santa Maria.
Etapas de produção
1. Retirada do barro Santa Maria, de cor cinza, no pé da Serra do Maia
2. Depois é molhado e passa três dias curtindo à sombra, encoberto com pano ou plástico
3. É misturado com areia fina, retirada de um córrego, peneirada e molhada
4. A peça é moldada e recebe acabamento
5. É pintada com tinta extraída da pedra de Toá e é guardada por três dias
6. É levada ao forno a lenha, por cerca de quatro horas
7. No dia seguinte é retirada e está pronta

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